Sim, fui convocado. Não sou soldado nem muito menos jogador de futebol, meu pai até que queria um dos dois papéis acima, mas a sorte nunca me ofereceu na disposição bélica muito menos no talento com a gorduchinha, mas sim, fui convocado.
Convocação presume-se que alguém maior que eu tenha feito o chamado e este alguém exista, é a própria Realidade em si.
Numa viagem corriqueira de trem no ramal Santa Cruz, voltando para casa na primeira semana do ano. Um dia nublado, chuvoso em sua maior parte, dia até mesmo sorumbático. Entre músicas tocadas em sua maior potência em meus fones de ouvido e memes sobre uma tal terceira guerra mundial, já perto da estação final fui. convocado pela Realidade de maneira retumbante mesmo que cegado pelo brilho da tela do iPhone através de algo mais rotineiro ainda: um pôr-do-sol.
Discussões acaloradas feitas pelos filósofos colocam em xeque a importância e a veracidade da beleza e não pretendo entrar nessa seara, até porque nada tenho a exceção, mas a beleza nada extraordinário de um pôr-do-sol comum de verão no Rio de Janeiro me convocou a realidade.
Confesso que foi arrebatador.
Foi a maior experiência com a beleza que já pude presenciar? Não. Mas hoje foi diferente. O clima do dia, a extrema fixação dos meus sentidos nesse aparelho e em seus acessórios, uma desconexão parcial com o mundo a minha volta que viajava por mim, mas aquele pôr-do-sol. Foi ele.
Na janela oposta à posição onde me encontrei aquele pedaço de metal chinês que trafega na linha férrea carioca, ali fui convocado.
Hoje é o terceiro dia de 2020, muitas resoluções de ano novo já foram feitas e eu não havia feito a minha até agora. Na verdade nunca o fizera, traços do meu temperamento talvez, esta convocação o trato de fazê-lo por mim. Sem fugas, sem distrações ou blindagens, a realidade chama-me de modo intenso e atraente.
Os antigos classificaram a beleza como um transcendental, uma das características de Deus que as coisas criadas participaram por terem sua procedência do benefício Divino. E aquele pequeno arrebatamento foi sim uma experiência transcendental; deixei o iPhone de lado, pouco me importava a música a destruir meus tímpanos, a única coisa que realmente importava era olhar aquele pôr-do-sol.
Levantei-me e fui ao encontro mais próximo possível daquela visão, mas o trem se deslocava até seu destino comum e o sol também se escondia. O tempo foi passando e enfim cheguei. Aquele arrebatamento acabou. Saem as cores vivas e alaranjadas do céu. e entra o cinza das construções. Deveria ser algo frustrante, mas não foi. Naqueles parcos minutos entendi o que preciso.
Estar presente no mundo, sem blindagens, distrações, essa é a convocação da Realidade. Quantas oportunidades foram perdidas de uma experiência como essa porque simplesmente deixei passar? O mundo é bom – geme em dores de parto é verdade – mas sobretudo é, como um outro transcendental, bom, como Aquele que o fez.
Se Deus me conservar no ser durante todos os outros 363 dias restantes deste ano – e por mais não sei mais quantos ainda por vir – terei ainda muitos crepúsculos a assistir, propositalmente, apenas percebendo a luz fugindo e dando lugar às trevas da noite ou como hoje, arrebatado. Que pelo menos mais uma vez na vida possa se repetir tal experiência.
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