16 de ago. de 2024

Em defesa de Urbain Grandier


O caso das “endemoniadas” de Loudun, na França, é um dos mais célebres quando se trata de injustiça e histeria. Uma trama com traços perversos de lascívia, maldade, loucura e inveja. Quero trazer neste artigo uma apologia ao Pe. Urbain Grandier, condenado injustamente à fogueira sob acusações de pacto diabólico e bruxaria.

Urbain Grandier (1590–1634) não fugia do comum de sua época, o século XVII, quando se tratava da vida eclesiástica. Estava nela não por Divina vocação, mas pela carreira. Tendo estudado com os Jesuítas e com boa formação teológica, sua não conformidade com o celibato que deveria ser abraçado de maneira livre e abnegada, foi uma grande pedra de tropeço em sua vida, sendo na verdade até questionados de maneira escrita por Grandier num livreto que tratarei mais adiante.

Jovem e eloquente, Grandier se utilizava de sua posição para duas coisas: As conquistas amorosas e políticas. Transferido para a paróquia de Loudun, graças a sua erudição foi primeiramente bem recebido pela elite local, que se voltaria contra ele causando sua condenação. Também o novo cura da cidade entra em rota de colisão com os religiosos locais por conta de sua popularidade, perdendo assim a influência que tinham até então.

Grandier envolve-se amorosamente com Philippa Trincant, que era filha do solicitador do Rei na localidade, com quem teve um filho, além de abertamente cortejar Madame de Brou, filha do conselheiro do Rei. Para De Brou, Grandier escreve um texto contra o celibato sacerdotal afirmando basicamente que ao impossível ninguém está obrigado e esse impossível seria a perfeita continência. Dado esse cenário, o cura de Loudun sofre seu primeiro processo que corre para as mãos do bispo local que o queria expulsar da paróquia e o chega a prendê-lo, mas Grandier consegue ser recolocado graças a uma manobra política recorrendo a um prelado de maior prestígio. A primeira forma de se verem livres de Grandier fora frustrada.

Uma outra personagem central dessa história é a Ir. Joana dos Anjos, que também como Grandier, não tinha a menor vocação para a vida consagrada. Foi criada com parentes que eram freiras e por conta de sua não formosura de seu corpo não haviam pretendentes para ela. Entrou para o Convento das Ursulinas, tendo feito seus votos e sendo de uma família muito poderosa foi galgando espaço até se tornar Superiora no convento de Loudun.

“Para quem não tinha vocação religiosa, viver num convento do século XVII era apenas uma sucessão de frustrações e aborrecimentos, mitigados em pequenas doses por uma ocasional exaltação religiosa, por fofocas com os visitantes no parlatório e, nas horas vagas, por algum inocente, mas inteiramente estúpido passatempo.”

Como o primeiro plano de se verem livres de Grandier, Pe. Mignon que também era o novo confessor das Ursulinas, que Huxley descreve coxo de nascimento, vazio de talento não menos que de atrativo, sempre invejara o cura em seus engenhos e êxitos. O ambiente no convento já vivia imerso na Superstição e no medo, certa feira um grupo de irmãs, logo após a morte do antigo confessor prepararam uma peça para as demais reclusas aproveitando a fama da casa em que residiam ser mal assombrada. Logrando êxito, logo algumas irmãs começaram a apresentar “sinais” e a contar durante suas confissões ao Pe. Mignon que demônios Incubus haviam visitado as celas, espíritos passeando pelos corredores e toda sorte de eventos. Era o que precisava para uma orquestração mais eficaz contra Grandier.

Dali em diante toda a sorte de eventos espetaculares começaram a acontecer com Joana dos Anjos e as outras irmãs do convento. Blasfêmias, posições não usuais do corpo, gritos, rostos desfigurados, “sinais” que qualquer exorcista hoje ainda consideraria como provas da presença diabólica naquele lugar. Lhermitte descreve em seu livro “Verdadeiras ou falsas possessões” algumas das proezas físicas feitas pelas outras reclusas:

Mas já outras freiras além dela pareciam estar possuídas e afligidas com a mesma doença. Às vezes, informa-nos o Sr. de Nion, elas passavam o pé esquerdo sobre os ombros até as bochechas. Elas também levantaram os pés até a cabeça, até que seus dedões tocassem o nariz. Outras ainda conseguiram esticar as pernas tanto para a esquerda e para a direita que se sentaram no chão, sem que nenhum espaço fosse visível entre seus corpos e o chão. Uma, a madre superiora, esticou as pernas de maneira tão extraordinária que, de um pé ao outro, a distância era de sete pés, embora ela mesma tivesse apenas um metro e meio de altura. O notável, que surpreendeu os observadores, foi que, apesar da intensidade e frequência dos ataques convulsivos, que eram consideradas agressões diabólicas, a saúde das freiras possuídas parecia não ter sido afetada: aquelas que eram um tanto delicadas pareciam mais saudáveis do que antes da possessão.

Como duvidar da autenticidade do acontecido quando nos exorcismos, agora públicos e com grande afluxo de pessoas, o “próprio diabo” afirmava ser ele quem fazia aquilo tudo e que era a mando de Grandier quando jogara um buquê de flores para dentro dos muros do convento? Sessões e mais sessões de luta contra toda caterva de espíritos imundos eram o verdadeiro entretenimento daquela pequena cidade. Freiras que antes nada de interessante, na visão dos seus conterrâneos, faziam, agora tornam-se o centro de um espetáculo dantesco. A fama de possuídas extrapolam os limites de Loudun e chega até os ouvidos da nobreza que também se faz presente para poder testemunhar tais prodígios. Além das convulsões, as freiras e em especial Joana dos Anjos declararam ter sonhos pecaminosos com Grandier. Huxley trás uma informação interessante, que após a morte de seu antigo confessor, a madre superiora havia escrito uma carta convidando Grandier a ser o novo guia espiritual das monjas, que não foi aceito pelo padre, gerando na prioresa um sentimento de amor-próprio ferido. Joana também desejava carnalmente Grandier.

Padre Quevedo explica em sua obra “Antes que os demônios voltem” que o contágio psíquico ocorrido no convento das Ursulinas era manifesto e exuberante tanto que a situação começou a sair do controle. Pe. Barré, um dos primeiros exorcistas percorreu todas as igrejas para ajudar seus colegas no sacerdócio no exorcismo de tantas mulheres que se achavam endemoninhadas. Cidades vizinhas também foram “infestadas pelos demônios” de Loudun trazendo assim que todo o ambiente demonófilo trazia em si mesmo a prova que o contágio psíquico era a causa dos fenômenos, além de algumas atitudes claramente forjadas. Ir. Joana sabia que nada do que acusava Grandier era verdade, mas e os acontecimentos? Se o início não era verdade, pelo menos o diabo poderia se valer para agir naquelas freiras, poderia afirmar qualquer exorcista dos dias de hoje.

Pe. Grandier sabia do perigo que corria, pois a época, acusações e posteriormente condenações por bruxaria levavam a pena capital à fogueira. Por conta disso pede ao Oficial de Justiça para isolar as freiras ursulinas, sendo completamente ignorado, continuando assim os exorcismos e acusações, afinal através do sacramental, o “demônio” havia sido obrigado a contar quem havia feito tal obra e o acusado era Grandier. E se espanta o testemunho do “demônio” ser levado em conta num processo penal, ainda hoje é aceito nos tribunais de justiça testemunho do espírito dos mortos através de cartas psicografadas. Exemplos não faltam e uma simples pesquisa mostra que a superstição ainda é pedra de toque até mesmo de operadores da justiça de hoje.

Desesperado, Grandier apela para o Arcebispo de Bordeaux para que envie seu médico pessoal para poder examinar as reclusas, coisa que também não acontece. Tudo está como seus inimigos precisavam. A acusação de bruxaria, acompanhada pela prisão de Grandier será o prelúdio do grande momento que tanto anseiam: sua morte na fogueira. Junto com sua prisão, todos os escritos e livros do padre são apreendidos, mas não é encontrado nenhuma obra sobre magia e feitiçaria — nenhum! A única coisa encontrada era o manuscrito sobre o celibato sacerdotal que havia feito para De Brou. O Bispo de Poiters convida os fiéis a testemunhar contra Grandier em seu processo, sendo que o próprio acusado não tinha defesa nem sequer estava presente durante o litígio, mas o que contou como prova cabal era o testemunho da Madre Superiora e suas outras dezesseis endemoniadas.

Uma das acusações foi que uma das leigas confessou através da boca de um demônio devidamente ordenado pelo exorcista que ela havia sido prostituída ao pároco e lhe oferecendo a tomá-la no grande Sabbath e dali fazê-la uma princesa da corte dos demônios. Grandier afirmava que nunca havia visto aquela moça, mas o próprio diabo estava o acusando sob coação a dizer a verdade a partir da autoridade do sacerdote. Pura prosopopeia. Grandier também foi examinado para saber se havia partes do seu corpo insensíveis para que ali fosse sua marca de consagração ao diabo. Uma zona onde espetando não se derrama sangue. Segundo o testemunho da Ir. Joanna esses lugares eram cinco: nas costas, duas nas nádegas, muito perto do ânus e uma em cada testículo. E a partir de mais essa acusação Grandier foi examinado sistematicamente com o auxílio de um estilete comprido. Gritos de dores ecoavam pelas paredes e seus inimigos já se alegravam pelas aflições já ocorridas. Os médicos encontram dois lugares, dos descritos por Joana dos Anjos, como pontos insensíveis, mas hoje se sabe que tais coisas acontecem a qualquer pessoa, até mesmo como truque de ilusionismo e que o Padre Quevedo costumava demonstrar em suas participações em programas de televisão. Nada de diabólico ali, na verdade diabólico somente a vontade de se verem livres de um inimigo que seus acusadores levantavam tal circo para poder ver saciada seu desejo.

Na devassa feita em suas posses, seus acusadores afirmaram ter encontrado a prova conclusiva que eles precisavam, o pacto, assinado com Asmodeu e com a assinatura de Grandier. Historiadores modernos comprovaram que a caligrafia no tal pacto não era do pároco, mas sim de Joanna dos Anjos. A condenação de Urbain Grandier já era tão certa que a cidade já ia se enchendo para testemunhar a execução pública que se avizinhava, era uma verdadeira festa.

Segundo Santo Agostinho, Deus não permitiria um mal de onde não pudesse tirar dele um bem maior e mesmo com tudo indo contra Grandier, parece que aquele suplício teria um propósito. De um padre que apesar de sua erudição, pouca ou nenhuma fé tinha, um “bon vivant” que não escondia sua não disposição em guardar o celibato, mas sim o questionava para aplacar a própria consciência e a de Madame De Brou, um colecionador de inimigos, seja pela sua formosura ou habilidade política, chega ao estado de prisioneiro, acometido a exames humilhantes e dolorosos, acusações infundadas, torturas e condições sub humanas. Este é Grandier que neste momento se vê diante de uma visita, um padre Agostiniano de nome Ambrose que havia o procurado para o consolar. Neste momento Grandier começa a confessar seus pecados, não mais como feito anteriormente, mas agora reconhecendo o que eles foram, portas deliberadamente fechadas diante da face de Deus. Durante a confissão chorou amargamente pelos seus pecados e assim recebeu a absolvição de seus pecados, talvez a primeira e única confissão sincera de toda sua vida. Antes de ser expulso da cela de Grandier, Pe. Ambrose diz as palavras que vão ecoar pela alma de seu penitente até o fim: “Deus está aqui e Cristo é agora”. Seus algozes não vão desistir diante de sua não-confissão do que realmente nunca o fizera. Se a acusação fosse de concubinato, seria plenamente verdadeiro, de irreverência com as coisas sagradas e o sagrado ministério sacerdotal, também seria verdade, mas sua condenação é por algo que nunca cogitou fazer, se envolver com o diabo para conquistar freiras.

Colocado no tribunal, Grandier persistia sereno, coisa que um dos seus acusadores, Padre Tranquille, explicava também se tratar de obra demoníaca, um orgulho impenitente. Para quem o quer, pode-se enxergar o diabo em qualquer coisa, à vontade do cliente. Depois do processo completamente viciado, sua sentença é proferida:

tinha que se ajoelhar diante das portas de São Pedro e de Santa Úrsula e ali, com uma soga ao redor do pescoço e um círio de duas libras na mão, demandar perdão de Deus, do Rei e da Justiça; mais tarde seria conduzido à praça de Santa Cruz, amarrado à armadilha e queimado vivo. Finalmente suas cinzas seriam pulverizadas aos quatro ventos.

Dali Grandier foi levado de volta à prisão onde foi barbeado e raspado todos os pelos, da cabeça aos pés, estava desfigurado. Foram-lhe arrancadas as unhas das mãos e dos pés e conduzido para o Palácio da Justiça. Como era o costume da época, dois padres — os que ajudaram a tramar a sórdida tramóia — iam exorcizando todas as coisas com água benta, uma vez aparecido Grandier com sua veste de condenado, também foi aspergido. O povo o enxergava como um palhaço. Depois de ter sido lido publicamente sua condenação, Grandier quebrando o silêncio se pronuncia:

Invoco como testemunhas a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e à Virgem,minha única advogada, para declarar solenemente que nunca fui feiticeiro, cometi sacrilégio nem conheci outra magia que a das Santas Escrituras que sempre preguei. Adoro a meu Redentor e rogo poder participar dos méritos do sangue de sua Paixão.

Mesmo não tendo esperança de que nesta etapa avançada de seu suplício reverter tudo aquilo diante dos homens, a única esperança que lhe restava é a que importa, em Deus e que Ele não o abandonaria. Continuou a falar do testemunho dos mártires que assim como ele também passaram pelo fogo, leões, espadas e cruzes. Seu discurso comoveu o coração daqueles que de perto e de longe foram assistir aquele espetáculo macabro, menos dos seus algozes. Aquilo não foi previsto por eles e ao invés de verem um condenado blasfemando e se debatendo em desespero, o que assistiam era, como descreve Huxley “um autêntico católico e estava oferecendo o exemplo mais comovedor e patético de resignação cristã.”

Para dar fim aquela cena, seus algozes mandam os espectadores saírem do salão onde se encontravam e Lauberdemont se dirige ao pároco para poder confessar sua culpa, mas sendo respondido por Grandier que não podia fazê-lo porque nunca aconteceu tais coisas. Recusando até o fim, foi levado à sala de torturas e ali continuou afirmando sua inocência. Faltando quinze minutos para a prova final na fogueira, Grandier se ajoelha e reza:

Grande Deus e Soberano Juiz, auxílio dos necessitados e oprimidos socorram-me; dêem-me a força necessária para suportar as penas a que fui condenado. Recebam minha alma na bem-aventurança dos santos, remetam meus pecados e perdoem ao mais baixo e desprezível de todos seus servos. Conhecedor do coração dos homens, Vocês sabem que não sou culpado dos crimes que me imputam e que a pena do fogo que terei que sofrer não é mais que o castigo de minha concupiscência. Redentor dos homens, perdoem a meus inimigos e a meus acusadores, mas lhes dêem luz para que vejam seus pecados e possam arrepender-se. Oh! Santa Virgem, protetora do penitente, recebam por sua graça em sua santa companhia a minha mãe desventurada, consolem a da perda de um filho que não teme que outras penas que as quais ela possa sofrer aqui na terra, de onde ele vai partir logo. Não faça minha vontade a não ser a Sua… Oh Deus! Você aqui, entre os instrumentos de tortura; Cristo agora, nesta hora da angústia suprema.

Esses relatos não são encontrados na literatura oficial feita pelo padre Tranquille sobre o caso Grandier, nem as orações nem sua postura foram relatadas, mas sim retratado de uma maneira mais diabólica e ingênua. Mas para a infelicidade dos verdugos aquela não foi a única fonte sobre os ocorridos em Loudun, havia ali observadores imparciais como o astrônomo Ismael Boulliau.

Mais da visão demonófila se mostrava nas atitudes oficiais daqueles homens de Igreja que exorcizaram todos os instrumentos de suplício sob o argumento que se não o fossem os demônios conseguiriam aplacar as dores das torturas. Não bastasse toda narrativa supersticiosa para sua condenação, agora até mesmo em suas horas finais isso o perseguiria. Grandier foi aplacado por severas formas de tortura ao qual foi resisitindo na medida do humanamente possível e neste ínterim, os padres acusadores continuavam a tentar colher uma confissão de que era um bruxo e havia feiro um pacto, mas nada vinha a boca de Grandier. A confissão que conseguiram era a única verdadeira: Fui homem e amei as mulheres.

Huxley descreve pormenorizadamente todas as torturas ao qual Grandier foi infligido e como tentaram de todos os meios obter a esperada confissão. Terminados os primeiros suplícios, foi conduzido a próxima etapa, o caminho até a praça da Santa Cruz onde estava sua fogueira. No caminho passou por sua antiga matriz paroquial onde pediu orações da comunidade, que por justiça cabe aqui trazer à tona que foi a única que não colaborou com a empreitada condenatória. Seguindo o caminho passou em frente ao convento das Ursulinas, lugar onde nunca plantara seus pés, mas de onde brotou toda sanha acusatória e ali pediu a Deus que perdoasse as freiras que testemunharam contra ele e que ainda tinham os “sintomas diabólicos”, sintomas esses que não cessarão com a morte de Grandier.

Chegando finalmente à praça, seis mil pessoas o aguardavam, toda a economia da cidade girava em torno daquela condenação. Ali Grandier foi colocado na pira e também todos os instrumentos foram devidamente exorcizados além do próprio fogo. O pároco tentou várias vezes falar à multidão, mas sempre era impedido por seus algozes, além de continuar a ser impelido a confessar sua não-culpa e sempre respondendo que não havia nada a confessar. Ali foi seu fim, colocado fogo sobre a palha, o fogo começa a consumir o combustível e consequentemente, Grandier. Entre orações de exorcismos e gritaria da turba reunida, esse foi o fim de Urbain Grandier, mas que antes de expirar pela última vez, como Cristo, clamou o perdão para seus inimigos. O fogo consumiu tudo e como na sentença, suas cinzas foram espalhadas aos quatro pontos cardeais.

Passado todo o terrível espetáculo, o que acontecia com Ir. Joanna dos Anjos e suas companheiras endemoniadas? Cessando o “causador” cessasse os prodígios malígnos? Não. Justamente por nunca terem sidos de origem diabólica ou sobrenatural que fosse, mas sim obra do psiquismo alterado, crises histéricas e fraudes, o teatro demoníaco continuaria no convento das Ursulinas. Novos exorcistas chegaram ao convento como foi o caso do jesuíta Pe. Surin que também acabou “possuído” pelo demônio depois de se entregar como vítima de expiação pelas Ursulinas. A madre superiora gozou de grande notoriedade pelo fato de ser possuída a tanto tempo e de realizar alguns “prodígios” como uma vez que o fenômeno da dermografia foi forjado por ela depois de uma “apresentação demoníaca”. Irmã Joanna também desenvolveu gravidez psicológica que afirmava ser de origem diabólica, além de através de artimanhas forjar a credulidade dos novos exorcistas e pessoas que a encontrava. Morreu com fama de santidade por muitos, após tantos anos de suplícios por ordem das “hostes diabólicas”, tendo sua cabeça conservada durante um tempo num relicário.

O que quis apresentar foi o caso em que maldade, desejo, histeria, medo, repressão e superstição condenaram um homem por conta de fatos e testemunhos completamente forjados e falsos. E como a mentalidade da época dava escopo a esses impropérios, trazendo aqui que apesar de toda uma vida de pecado, erros e luxúria, Padre Urbain Grandier morreu mártir. Reconhecendo seus erros, e a semelhança de Cristo clamando perdão aos seus algozes. Hoje em dia não existe a condenação por bruxaria, mas a mentalidade supersticiosa sem mantém quase como a do Século XVI, não por conta da sã doutrina católica, que nunca afirmou e na verdade condena toda crença em pactos, maldições, feitiços e sorte de coisas que os supersticiosos acreditam manipular o diabo a partir de sua vontade, como um sacramento do diabo.

Fábio Almeida é Professor de Filosofia e História, bacharel pela PUC-Rio e licenciado pelo Centro Universitário ETEP; Pós-graduado latu sensu em Docência no Ensino Fundamental e Médio pela UniBF.

Referências Bibliográficas

CARREIRA, Shirley de Souza. História e representação literária:: Uma reflexão sobre Os demônios de Loudun, de Aldous Huxley. Moara, Belém, ed. 39, p. 1–18, 2013.

HUXLEY, Aldous. Os demônios de Loudun. 3ª. ed. São Paulo: ‎ Biblioteca Azul, 2014. 400 p. ISBN 8525056960.

LHERMITTE, Jean. True or false possession?: How to distinguish the Demonic from the Demented. Manchester: Sophia Institute Press, 2013. 105 p. ISBN 978–1–622821–72–3.

PINHEIRO, Aline. Justiça aceita cartas psicografadas para absolver réus. In: ConJur. [S. l.], 14 jul. 2007. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-jul-14/justica_aceita_cartas_psicografadas_absolver_reus. Acesso em: 25 maio 2023.

QUEVEDO, Oscar G. Antes que os demônios voltem. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1989. 547 p. ISBN 85–15–00098–9.

VOCÊ ESTÁ AÍ?

 Foi assim, numa pergunta sem muito interesse filosófico o despertar de um questionamento: Realmente estou aqui? Primeiramente veio o espírito gaiato que fez o favor de lembrar-me do meme no qual aparece a foto do Tiririca num fundo preto que se encontra escrito: “Tentei fugir de mim. Mas em todo lugar que eu ia, eu tava lá.” Verdade completa, não tenho como fugir de mim mesmo me impedindo de me deslocar espacialmente, mas a pergunta continua no ar, realmente estou aqui?

Após rir da gaiatice lembrei-me também de outra frase, aí sim muito mais profundo de São Josemaría Escrivá: “Faz o que deves e está no que fazes”. O questionamento não é deslocado da realidade, perguntar a mim mesmo se realmente estou aqui leva a seguinte interrogação: Sou eu mesmo quem estou conduzindo minha vida ou somente a levo a toque de caixa, no “deixa a vida me levar” cantado pelo trovador carioca?

Ledo engano ao pensar que somente eu conduzo a minha vida, até porque não depende de mim a própria manutenção do meu ser, tendo em vista que quem sustenta é o Ser, a quem chamamos Deus. Seja num contexto religioso baseado na Revelação divina ou na investigação filosófica de primeira grandeza, ser e estar confundindo-se e assemelhando-se.

Admitir que as coisas são e que estão presentes ajuda a compreender que tudo ao meu redor não depende de mim para existir — e aqui outra confusão filosófica entre o ser e o existir, mas é assunto para outra hora — nem que minha existência é o centro do universo, tendência altamente egoísta que você e eu, caro leitor, carregamos em maior ou menor grau.

Outro fator que entra na investigação é o cálculo. Quantas vezes para tentar ter controle sobre a vida e sobre os atos futuros tentei contabilizar os passos a serem dados numa tentativa frustrada de me parecer ao Senhor do tempo e da história? A vida para ser vivida de modo pleno não suporta mesquinharia, acaba-se atualizada a tentativa primeira da humanidade transmitida até hoje pelo livro do Gênesis: “Sereis como deuses” (Gn 3, 5).

Não é possível querer adiantar anos à frente daquilo que está diante do meu nariz — está no que fazes, repita Escrivá — se minha circunstância hoje é essa, e que a viva da melhor forma possível tendo em conta que não depende somente de mim — trabalha como se tudo dependesse de ti e confia como se tudo dependesse de Deus, afirma o fundador da Companhia de Jesus.

Respondendo a pergunta originária deste texto, sim estou aqui (e você está aí, e é bom que você está mesmo) em Niterói, mas posso estar com a cabeça nas nuvens, ou com o coração em Santa Cruz ou com o pensamento em maio de 2021 , mas devo estar aqui, porque a mim resta somente esta parcela de tempo. Até chegar lá, 2021 ou o próximo final de semana, terei que passar pelo hoje, que daqui a pouco se torna ontem e em breve chega o amanhã. É bom estar presente, porque na chamada da vida, a primeira falta já reprova.

ESTOU NO FUTURO

 


Sim, estou em 2020. Tive esse estado de que estou no futuro quando estava no carro que chamei a partir do iPhone usando a rede 4G e conversando via WhatsApp com minha noiva que trabalha na Zona Norte do Rio e com meu pai na Zona Oeste e eu estou em Niterói, do outro lado da Guanabara. Chegando o destino, o também smartphone motorista do parceiro do 99 — afinal eles não são empregados, avisa-nos com aquela voz metálica da inteligência artificial: “destino a frente, corrida paga em dinheiro”, lembrando a mim e ao condutor que está na hora de separar as trocas e de que o fim da corrida se avizinha.

Quantas coisas estão ao meu redor e acessíveis que minha avó em 1950 não sonhava que existisse ou que seria possível? Ela passou por várias revoluções tecnológicas, desde o rádio até o smartphone — Dona Hilda nos deixou em 2016 — e eu já naquela época fiquei me questionando como reagirei ao futuro. Não só em relação à tecnologia, mas ao mundo e a mim mesmo.

Louis Lavelle diz que o instante é precisamente o cruzamento do tempo com a eternidade, e é este curto espaço de tempo que tenho, e o filósofo francês continua a dizer que é nele que agimos, é nele que o
real toma para nós a sua forma sensível ”. De que adianta conjecturar o futuro, seremos seres biônicos como na série Black Mirror ou e se vivermos entre paus e pedras depois de um cataclisma nuclear, se este instante que temos eu o faço troça com ele.

Carpe diem, dizem alguns.

Memento mori, afirmo outros.

Unem-se as duas sentenças latinas: Memento mori carpe diem — Lembre-se que vai morrer, aproveite o dia.

Sábios monges que cunharam esta expressão que não deveria ser mutilada. Uma sem a outra fica sem sentido. O carpe diem torna-se uma ode à vida sem consequências, afinal aproveite o dia. Memento mori puro e simplesmente transforma-se no cântico fatalista; vamos morrer. Mas se o instante é a articulação entre o tempo e a eternidade, o vivamos da melhor forma possível, sabendo que sim, a eternidade chegará. Como chegou para minha avó em 2016.

Não posso dizer que Dona Hilda foi uma mulher do seu tempo porque muitas das ações que ela fez chega até mim hoje — e agradeço a Deus por chegar. Restringir a ser “homem ou mulher do seu tempo” é reduzir a capacidade que os atos humanos têm de chegar até hoje e ir além. Sim, minha vida é circunscrita no tempo evidentemente, como a de todos são, mas você e eu somos chamados a sermos eternos.

Em 2070 pouco me importa se teremos olhos biônicos que substituirão as câmeras de nossos smartphones ou que drones entregarão nossas encomendas da Amazon ou até mesmo se o homem terá pisado em Marte, interessará mesmo se vivo hoje, em 2020, de modo verdadeiro e intenso, pois a eternidade já se avizinha. Na atualidade não há espaço para o cálculo, para a mesquinhez, para o egoísmo e outras formas de se jogar fora desse instante que tenho. Na eternidade com o Eterno só há espaço para o Amor e é ele quem permanece.

FUI CONVOCADO


Sim, fui convocado. Não sou soldado nem muito menos jogador de futebol, meu pai até que queria um dos dois papéis acima, mas a sorte nunca me ofereceu na disposição bélica muito menos no talento com a gorduchinha, mas sim, fui convocado.

Convocação presume-se que alguém maior que eu tenha feito o chamado e este alguém exista, é a própria Realidade em si.

Numa viagem corriqueira de trem no ramal Santa Cruz, voltando para casa na primeira semana do ano. Um dia nublado, chuvoso em sua maior parte, dia até mesmo sorumbático. Entre músicas tocadas em sua maior potência em meus fones de ouvido e memes sobre uma tal terceira guerra mundial, já perto da estação final fui. convocado pela Realidade de maneira retumbante mesmo que cegado pelo brilho da tela do iPhone através de algo mais rotineiro ainda: um pôr-do-sol.

Discussões acaloradas feitas pelos filósofos colocam em xeque a importância e a veracidade da beleza e não pretendo entrar nessa seara, até porque nada tenho a exceção, mas a beleza nada extraordinário de um pôr-do-sol comum de verão no Rio de Janeiro me convocou a realidade.

Confesso que foi arrebatador.

Foi a maior experiência com a beleza que já pude presenciar? Não. Mas hoje foi diferente. O clima do dia, a extrema fixação dos meus sentidos nesse aparelho e em seus acessórios, uma desconexão parcial com o mundo a minha volta que viajava por mim, mas aquele pôr-do-sol. Foi ele.

Na janela oposta à posição onde me encontrei aquele pedaço de metal chinês que trafega na linha férrea carioca, ali fui convocado.

Hoje é o terceiro dia de 2020, muitas resoluções de ano novo já foram feitas e eu não havia feito a minha até agora. Na verdade nunca o fizera, traços do meu temperamento talvez, esta convocação o trato de fazê-lo por mim. Sem fugas, sem distrações ou blindagens, a realidade chama-me de modo intenso e atraente.

Os antigos classificaram a beleza como um transcendental, uma das características de Deus que as coisas criadas participaram por terem sua procedência do benefício Divino. E aquele pequeno arrebatamento foi sim uma experiência transcendental; deixei o iPhone de lado, pouco me importava a música a destruir meus tímpanos, a única coisa que realmente importava era olhar aquele pôr-do-sol.

Levantei-me e fui ao encontro mais próximo possível daquela visão, mas o trem se deslocava até seu destino comum e o sol também se escondia. O tempo foi passando e enfim cheguei. Aquele arrebatamento acabou. Saem as cores vivas e alaranjadas do céu. e entra o cinza das construções. Deveria ser algo frustrante, mas não foi. Naqueles parcos minutos entendi o que preciso.

Estar presente no mundo, sem blindagens, distrações, essa é a convocação da Realidade. Quantas oportunidades foram perdidas de uma experiência como essa porque simplesmente deixei passar? O mundo é bom – geme em dores de parto é verdade – mas sobretudo é, como um outro transcendental, bom, como Aquele que o fez.

Se Deus me conservar no ser durante todos os outros 363 dias restantes deste ano – e por mais não sei mais quantos ainda por vir – terei ainda muitos crepúsculos a assistir, propositalmente, apenas percebendo a luz fugindo e dando lugar às trevas da noite ou como hoje, arrebatado. Que pelo menos mais uma vez na vida possa se repetir tal experiência.